I- As origens da Recuperação Judicial no Brasil
Embora se possa considerar que as primeiras regras a respeito do Direito Falimentar no Brasil datem de meados de 1800, com as Ordenações do Reino de Portugal, o Código Comercial brasileiro de 1850 e o Regulamento 738 do mesmo ano foram as primeiras legislações nacionais com a ambição de regulamentar o tema.
Após décadas de críticas às regras estabelecidas e muitas reformulações, finalmente, em 1945 foi editado o Decreto-lei 7.661, que antecedeu a nossa atual legislação vigente.
Embora tenha consolidado em nosso país o famigerado instituto da Concordada, substituído posteriormente pela Recuperação Judicial, também fora alvo de intensas críticas por prever forte intervenção do Estado, afastando-se do paradigma liberal e consensual que caracterizam o Direito Comercial.
II – A Lei n. 11.101/2005 (LRE)
Ainda que tardiamente, a promulgação do atual diploma, fora impulsionada pela Constituição de 1988, que trouxe, no artigo 170, nos princípios da ordem econômica nacional, certa preocupação indireta com a preservação da empresa.
Assim, estabelece a Lei n. 11.101/2005 em seu art. 4, que:
A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
Do mesmo dispositivo se extraem os três importantes princípios norteadores da recuperação judicial: (1) a preservação da empresa; (2) manutenção de empregos; e (3) a tutela dos interesses dos credores.
Pra atingir o objetivo da Lei, o sistema brasileiro estabelece como fundamento a negociação entre a empresa devedora e os seus credores. Assim, conforme se verá mais adiante, quando tratarmos do procedimento, o objetivo imediato da recuperação judicial é viabilizar a negociação entre a devedora e seus credores. Daqui surge um quarto importante princípio do processo aqui abordado: o dever de transparência e lealdade.
Por isso é que se estabelece mecanismos como, por exemplo, o chamado stay period, que, nos termos do art. 6º, a partir do deferimento do deferimento do processamento da recuperação judicial, implica a:
I – suspensão do curso da prescrição das obrigações do devedor sujeitas ao regime desta Lei;
II – suspensão das execuções ajuizadas contra o devedor, inclusive daquelas dos credores particulares do sócio solidário, relativas a créditos ou obrigações sujeitos à recuperação judicial ou à falência;
III – proibição de qualquer forma de retenção, arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição judicial ou extrajudicial sobre os bens do devedor, oriunda de demandas judiciais ou extrajudiciais cujos créditos ou obrigações sujeitem-se à recuperação judicial ou à falência.
A nova legislação subtrai o nocivo protagonismo do judiciário presente nas antigas Concordadas. No Decreto-lei anterior o instituto era considerado uma concessão dada pelo juiz, cuja sentença substituiria a manifestação de vontade dos credores na formação do contrato[1].
A Lei n. 11.101 de 2005, em respeito à consensualidade e atenta a outros valores caros ao sistema, retirou do Judiciário tamanho poder nas recuperações judiciais, transferindo as decisões sobre o futuro da empresa em crise para os credores.
Assim, com clara inspiração no Bankruptcy Code dos Estados Unidos, a LRF, submete a análise de viabilidade da recuperação da empresa aos credores, que, nos termos do art. 35, deliberam, na Assembléia-Geral, sobre:
a) aprovação, rejeição ou modificação do plano de recuperação judicial apresentado pelo devedor;
b) a constituição do Comitê de Credores, a escolha de seus membros e sua substituição;
c) (VETADO)
d) o pedido de desistência do devedor, nos termos do § 4º do art. 52 desta Lei;
e) o nome do gestor judicial, quando do afastamento do devedor;
f) qualquer outra matéria que possa afetar os interesses dos credores;
g) alienação de bens ou direitos do ativo não circulante do devedor, não prevista no plano de recuperação judicial;
Ante o exposto, nos termos da legislação atual, ao Poder Judiciário, além óbvia verificação de conformidade com normas de ordem pública, incumbe a homologação da decisão tomada pela Assembleia-Geral de Credores[2].
Tal entendimento acaba por dar ao plano de recuperação judicial natureza de negócio jurídico privado. Além de ser o entendimento majoritário da doutrina pátria, parece ser a posição também de parte do Superior Tribunal de Justiça. Vejamos excerto do importante Acórdão do Recurso Especial n. 1.359.311-SP:
Se é verdade que a intervenção judicial no quadrante mercadológico de uma empresa em crise visa tutelar interesses públicos relacionados à sua função social e à manutenção da fonte produtiva e dos postos de trabalho, não é menos certo que a recuperação judicial, com a aprovação do plano, desenvolve-se essencialmente por uma nova relação negocial estabelecida entre o devedor e os credores reunidos em assembleia.
Por fim, conforme já pontuado, não se ignora que a liberdade contratual aqui não é absoluta. A negociação entre a recuperando e seus credores deve, evidentemente, respeitar as regras e princípios do ordenamento jurídico brasileiro, notadamente da LRF, estando consequentemente também sujeita a uma inevitável valoração do judiciário.
III. Do procedimento especial de Recuperação Judicial
A recuperação judicial segue procedimento especial regulado pela própria Lei n. 11.101/2005, combinado com o Código de Processo Civil.
O procedimento se inicia com a apresentação da petição inicial com toda documentação determinada pelo art. 51 da LRF, como: relação nominal de credores, balanços, etc. Com a alteração da LRF promovida pela Lei n. 14.112/2020[3], poderá o juiz, quando reputar necessário, nomear profissional com capacidade técnica para promover a constatação das reais condições de funcionamento da requerente e da regularidade e da completude da documentação apresentada.
A partir do deferimento, o processamento da recuperação judicial se desdobra em duas linhas paralelas e simultâneas de trabalho.
Na primeira linha de ação, haverá a divulgação da primeira relação de credores, com abertura de prazo para apresentação de divergências e/ou habilitações a serem julgadas pelo Administrador Judicial[4]. Definida a segunda relação de credores, abre-se prazo para apresentação das eventuais impugnações judiciais para, finalmente, ser definido o Quadro Geral de Credores.
Na segunda linha, temos a apresentação do plano de recuperação no prazo de 60 dias[5], nos termos do art. 53 da Lei 11.101/2005, e, após as eventuais objeções, sua votação em Assembleia-Geral de Credores.
Registra-se que, na votação em Assembleia, os credores são separados em 4 classes, devendo o plano, em regra, ser aprovado em todas as classes: (1) créditos trabalhistas; (2) créditos com garantia real; (3) créditos quirografários; (4) créditos quirografários de ME e EPP.
O quórum de aprovação varia conforme a classe. Nas classes 1 e 4, em razão dos credores votarem por cabeça, independentemente do valor do crédito, o plano será aprovado, nessas classes, quando forem obtidos votos de mais de 50% dos credores presentes na AGC.
Nas classes 2 e 3, vota-se por cabeça e crédito, sendo o plano aprovado nessas classes se contar com o voto favorável de mais de 50% dos credores presentes na AGC e caso representem mais de 50% do crédito.
Nos termos do art. 45 da LRF, nas deliberações sobre o plano de recuperação judicial, todas as classes de credores deverão aprovar a proposta.
Aprovado o plano pela AGC, em votação conforme o art. 58 da Lei 11.101/2005, os autos seguem para homologação judicial e concessão da recuperação judicial do devedor. Se o plano for rejeitado, o juiz deverá convolar a recuperação judicial em falência, nos termos do art. 58A.
Conforme adiantado, existe ainda, entretanto, a exceção do cram down, regulado pelo art. 58 da LRF:
1º O juiz poderá conceder a recuperação judicial com base em plano que não obteve aprovação na forma do art. 45 desta Lei, desde que, na mesma assembléia, tenha obtido, de forma cumulativa:
I – o voto favorável de credores que representem mais da metade do valor de todos os créditos presentes à assembléia, independentemente de classes;
II – a aprovação de 2 (duas) das classes de credores nos termos do art. 45 desta Lei ou, caso haja somente 2 (duas) classes com credores votantes, a aprovação de pelo menos 1 (uma) delas;
II – a aprovação de 3 (três) das classes de credores ou, caso haja somente 3 (três) classes com credores votantes, a aprovação de pelo menos 2 (duas) das classes ou, caso haja somente 2 (duas) classes com credores votantes, a aprovação de pelo menos 1 (uma) delas, sempre nos termos do art. 45 desta Lei;
III – na classe que o houver rejeitado, o voto favorável de mais de 1/3 (um terço) dos credores, computados na forma dos §§ 1º e 2º do art. 45 desta Lei.
Em suma, o instituto do Cram Down, termo importado da doutrina americana, possibilita ao juiz impor, aos credores discordantes, a aprovação do plano apresentado pelo devedor, cumpridos os requisitos acima listados.
Nas próximas publicações, aprofundaremos tópicos importantes da Recuperação Judicial. Acompanhe!
[1] Isso contava da própria Exposição de Motivos Decreto-lei, subscrita pelo Ministro Alexandre Marcondes Machado.
[2] Existe a exceção do cram down, uma faculdade outorgada ao juiz para aprovação do plano quando não aprovado em Assembleia, que será objeto de maior detalhamento a frente.
[3] Em verdade, trata-se de positivação de antiga recomendação do CNJ (Recomendação 57/2019).
[4] Trata-se de fase puramente administrativa, feita perante o administrador judicial, sem intervenção judicial.
[5] O prazo aqui deve ser cumprido sob pena de haver a convolação da recuperação judicial em falência, nos termos do art. 73, II, da Lei 11.101/2005.
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