Objeções à atuação expansiva do Poder Judiciário por meio do Controle de Constitucionalidade.

INTRODUÇÃO

Em o “Espírito das Leis”[1], obra clássica de Montesquieu que influenciou o constitucionalismo ocidental e apresentou uma estrutura de poderes de modo a prevenir o absolutismo, há um trecho em que o autor assevera que os homens que possuem poder tendem a abusar dele, indo até onde encontrem limites. Assim, para conter esse abuso, propõe o autor uma estrutura em que poder freie o poder.

Consoante comentários de José Levi do Amaral Júnior a essa obra, Montesquieu propõe um verdadeiro sistema de neutralização dos poderes[2]. Os de legislar e de executar seriam neutralizados mediante a comunhão de faculdades de estatuir e de impedir. Já o poder de julgar, por sua vez, seria neutralizado em si mesmo, especialmente em razão: (i) do modo em que são formados os tribunais (v.g. por pessoas extraídas do povo e durante apenas o tempo necessário); e (ii) do modo de decidir dos juízes, que deve ser, segundo o filósofo francês, não mais que a boca que pronuncia as sentenças da lei.

A forma como está estruturado o poder em nosso país, entretanto, não reflete o pensamento de Montesquieu. Ainda que tenhamos a tripartição das funções estatais, e um sistema de neutralização entre o poder legislativo e executivo, não podemos dizer que em nossa estrutura o Poder Judiciário se neutraliza por si só.

Isso porque, ressalva feita ao tribunal do júri, não temos juízes extraídos do povo; e os magistrados não julgam apenas por tempo determinado, salvo exceções específicas, como a dos Ministros do TSE. Ademais, atualmente, os juízes não mais se restringem à reprodução exata do texto da lei, especialmente em um contexto de enorme aumento da complexidade das relações sociais e de um incremento nas decisões que tomam os princípios como base da fundamentação. Outra diferença fundamental que reforça que o nosso Poder Judiciário não é neutro, é o fato de que ele exerce um potente poder de veto, qual seja, o de declarar uma lei inconstitucional.

O antecedente mais remoto do controle de constitucionalidade vem desde a antiguidade ateniense. Assim, desde então, o controle da produção legislativa em face de um Direito superior perpassou a nossa história, até chegarmos aos conhecidos modelos americano e europeu de controle de constitucionalidade.

Nesse percurso, até os dias de hoje, muito se discute acerca dos limites do controle pelo Poder Judiciário em face de leis e atos normativos. Como consequência disso, temos na doutrina contemporânea representantes que se dividem entre aqueles que defendem uma atuação expansiva do Poder Judiciário, mormente no que tange à proteção de direitos fundamentais, e aqueles que apontam severas objeções a essa superposição do Judiciário em relação as demais poderes, ao lidar com leis, atos normativos e políticas públicas. Questões acerca da legitimidade democrática da expansão da atuação do Poder Judiciário e a cláusula de separação de poderes continuam em voga e animam o debate político-constitucional hodierno.

A metodologia utilizada no presente artigo se dá mediante pesquisa bibliográfica, por meio da análise da legislação, doutrina e jurisprudência, especialmente relacionados aos argumentos favoráveis e contrários à prerrogativa do Judicial review.

O presente artigo se estrutura em quatro partes, além de introdução e conclusão. A primeira tratará dos antecedentes e modelos de Controle de Constitucionalidade; a segunda tratará do Controle de Constitucionalidade no Brasil; e a terceira contextualizará a atuação expansiva do Poder Judiciário; e a quarta, as objeções à atuação expansiva do Poder Judiciário por meio do Controle de Constitucionalidade.

 

1- Antecedentes e Modelos de Controle de Constitucionalidade

1.1- Antecedentes remotos

 

O precedente mais antigo de controle de constitucionalidade que se menciona na doutrina ocorreu na antiguidade ateniense e foi intitulado de grafe paranomon. Por meio desse mecanismo, as deliberações do Poder Legislativo eram confrontadas com um Direito superior às leis humanas. Dessa sistemática poderia resultar a invalidade das decisões da Assembleia Popular, como também a punição daquele que propôs uma lei em desconformidade com o Direito transcendente[3].

Na Idade Média, a ideia do jusnaturalismo assumia um destaque, sendo tida como uma norma superior, derivada de Deus, e que tinha o condão de inspirar todas as demais. Desse modo, as normas que afrontassem o direito natural seriam nulas. Mais adiante, o pensamento jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII, propunha limites ao legislador, que deveria se ater ao direito natural, tendo em vista a existência de direitos inatos e irrenunciáveis[4].

Ainda no Século XVII, Edward Coke propunha a supremacia do commom law em face da própria autoridade do Parlamento Inglês. A ideia acabou sendo abandonada no país, mas passou às colônias inglesas na América e ensejou a criação de uma cultura favorável ao judicial review nos Estados Unidos. Isso porque as colônias aprovavam suas próprias leis, mas essas deveriam estar em conformidade com o Direito Inglês, por meio da verificação por juízes dessa colônia[5].

Temos, portanto, que o controle de constitucionalidade, ainda que seja uma relevante contribuição norte-americana, que culminou no caso Marbury vs. Madison, não pode ser visto como um evento isolado, mas sim como um fenômeno que foi amadurecido por muitos anos de história, e não apenas americana, mas universal[6].

 

1.2- O modelo Americano

Em linhas gerais, o modelo americano de controle de constitucionalidade, segundo José Levi Mello do Amaral Júnior[7], possui as seguintes características: a) é difuso, uma vez que qualquer juiz ou colegiado pode deliberar sobre a inconstitucionalidade de uma lei; b) é concreto, dado que a decisão do poder judiciário se dá no bojo de um caso concreto; c) é inter partes, uma vez que faz coisa julgada somente entre os litigantes, sendo a norma atacada não aplicada ao caso concreto, sem que haja uma remoção do ordenamento.

Segundo o autor, uma vez que a Suprema Corte decida a inconstitucionalidade de uma lei, os demais magistrados, na prática, acabam por não aplicar essa norma em casos análogos ao que foi decidido. Isso se dá em razão do princípio “stare decisis et non quieta movere”, que dá coerência e funcionalidade ao modelo de controle de constitucionalidade americano, ressalvadas as hipóteses de overruling (superação de precedente) ou de distinguishing (em razão de peculiaridade entre o precedente judicial e o caso sob exame).

Cumpre esclarecer que essas características são fruto de uma dinâmica da história política norte-americana, como será visto nos dois subitens a seguir.

 

1.2.1- O caso Marbury vs Madison

Os EUA eram uma jovem república, saída de uma guerra de independência em que deixou de ser colônia, após o desfecho da Revolução Americana. A união das treze colônias se deu de forma muito tormentosa, uma vez que o novo modo de organização do Estado representava renúncia de poderes dessas colônias em detrimento de um governo da união.

Assim, o modo de organizar e dividir o poder entre as colônias e a união ensejou divergências entre os founding fathers, o que se consubstanciou no embrião do caso em tela. De um lado tínhamos o Partido Federalista, que, em linhas gerais, buscava um poder maior para o governo central. De outro lado, o Partido Republicano (Antifederalistas), que, em síntese, buscava a descentralização do poder e a defesa dos indivíduos em face do Estado.

Em 1800, os EUA eram governados pelo Presidente John Adams, que era um Federalista. Nesse mesmo ano, ocorreram eleições e Thomas Jefferson, que era um antifederalista, foi eleito presidente dos EUA, após um conturbado escrutínio que terminou nas mãos da Câmara dos Representantes.

Com isso, os federalistas promoveram alterações no Poder Judiciário, por meio do Judiciary Act em 1801, a fim de aumentar a influência nesse poder[8]. Foram tomadas medidas como: a diminuição do número de ministros na Suprema Corte; e a criação de novos cargos de juiz federal, os quais foram imediatamente preenchidos por federalistas aliados a Adams. Além disso, permitiu a nomeação de Juízes de paz para o Distrito de Columbia, também com vistas à nomeação por aliados federalistas. Esses juízes ficaram conhecidos como Midnight Judges, uma vez que foram nomeados no apagar das luzes do Governo de Adams. O Senado aprovou as nomeações em 3 de março de 1801, deixando apenas um dia para assinatura dos atos de investidura e entrega aos nomeados, uma vez que a posse de Jefferson já estava marcada para o dia 4 de março de 1801.

Quando Thomas Jefferson toma posse, determina que não sejam entregues os atos de investidura (commissions) àqueles que ainda não tinham recebido. William Marbury, um apoiador de longa data de Adams, apesar de ter sido nomeado, não chega a receber seu ato de investidura. Frente à recusa do novo Secretário de Estado em entregá-lo, Marbury, em dezembro de 1801, ingressa com uma ação judicial (writ of mandamus – o nosso mandado de segurança) na Suprema Corte buscando que o Judiciário ordene ao Secretário de Estado que proceda à entrega do ato de investidura e lhe garanta o acesso ao cargo.

Assim, estava posto o cenário no qual emergiria a histórica decisão de Marbury vs. Madison: no contexto político da rivalidade entre Federalistas e Republicanos; no jogo de poder e influência da distribuição de cargos no Estado; nas medidas derradeiras de Adams como presidente; e até na represália de Jefferson em não entregar os cargos nomeados por seu antecessor[9].

A questão jurídica pode ser tida como simples, relacionadas basicamente aos seguintes pontos elencados pelo próprio Chief Justice Marshall: 1) O impetrante Marbury tem direito ao diploma requerido (para investidura no cargo de juiz de paz)? 2) Se ele tem o direito e houve uma violação, oferece o direito americano a ele um remédio? Qual seria o remédio? 3) A Suprema Corte tem autoridade para ordenar a entrega do diploma a ele? Ou seja, se o direito lhe oferece um remédio será esse um mandamus dessa Corte? [10]

Quanto à 1° questão, a resposta é sim. Marshall constata que Murbury foi de fato indicado/nomeado e teve seu diploma assinado pelo presidente, mas não o recebeu, o que implica violação de um direito. Na decisão o magistrado pontua que quando os chefes dos departamentos do Governo possuem uma discricionariedade constitucional ou legal, os seus atos são apenas politicamente examináveis. Ocorre que quando um dever específico é atribuído por lei e os direitos individuais dependem do cumprimento desse dever, parece igualmente claro que o indivíduo que se considera lesado tem o direito de recorrer às leis de seu país para obter uma solução. A conclusão foi a de que fazer a retenção da comission era um ato violador de um direito adquirido.

Quanto à 2° questão, a resposta é também positiva. Entendeu a Suprema Corte que havia sim um remédio para enfrentar esse caso concreto, e que esse seria o writ of mandamus.

Quanto à 3° questão, a resposta foi negativa. Marshall dispôs que a Corte não poderia conceder o mandamus, pois a ação se baseava em um dispositivo de lei que ampliou a competência da suprema corte, o que não poderia ser feito. Por isso, esse dispositivo seria inconstitucional e não poderia servir de suporte para a concessão do mandamus.  Em outras palavras, não cabia o writ porque o pedido foi feito diretamente a Suprema Corte, cuja competência originária era estritamente definida na Constituição e não poderia ser dilatada pela Lei Judiciária de 1789.

Assim, Marshall decidiu que era inconstitucional o artigo dessa lei Judiciária, que ampliou a competência originária à Suprema Corte para expedir ordens de mandamus. Dito de outra forma, o Judiciary Act (lei de 1789) afirmava que incumbia à Suprema Corte o julgamento de Mandamus impetrado em face de Secretário de Estado, só que o art. III da Constituição Americana informava que a Suprema Corte não tinha competência para esse julgamento.

O Tribunal considerou que a recusa de Madison em investi-lo no cargo era ilegal, mas não ordenou que Madison entregasse a comissão de Marbury por meio de mandado de segurança. Em vez disso, o Tribunal considerou que a disposição do Ato do Judiciário de 1789 que permitia a Marbury levar sua reclamação ao Supremo Tribunal era inconstitucional.

Marshall, portanto, evitou que a Suprema Corte entrasse em conflito com o Poder Executivo e, na mesma decisão, afirmou a possibilidade de o Poder Judiciário anular as leis votadas pelo Congresso norte-americano.

A tese (primary holding) assentada foi a de que: “O Congresso não tem o poder de aprovar leis contrárias à Constituição, como, por exemplo, expandindo o escopo da jurisdição original da Suprema Corte.” Assim, a decisão de Marshall denotou que o Congresso não tinha poderes para modificar a Constituição por meio de legislação regular, uma vez que a cláusula de Supremacia colocava a Constituição acima das leis. Desse modo, o Chief Justice Marshall estabeleceu o princípio da revisão judicial, ou seja, o poder de declarar uma lei inconstitucional.

Verificou-se, portanto, que a suprema corte usou o seu próprio entendimento da Constituição para revisar a validade de um ato de outro poder, embora essa prerrogativa não estivesse aparente no texto da Constituição. Ou seja, o judicial review não estava expresso no texto constitucional. Seja como for, o judicial review foi propagado e consolidado por decisões posteriores ao longo da história norte-americana.

Como exemplo importante dessa consolidação cita-se o caso McCulloch v. Maryland, que versa sobre um conflito federativo, em que a corte decidiu que a norma que instituiu a tributação pelo estado de Maryland em face de um banco criado pela União era inconstitucional. A suprema corte afirmou ali o “princípio da imunidade recíproca”, bem como a doutrina dos “poderes implícitos” [11].

Ainda sobre o caso Marbury vs Madison, William Rehnquist, juiz da suprema corte dos Estados Unidos entre 1972 e 2005, afirmou que era preciso conhecer apenas alguns casos da Suprema Corte para compreender o seu papel para história da nação americana em suas diversas fases, e Marbury vs Madison certamente era um desses casos[12].

 

1.2.2- O Judicial Review antes do caso Marbury vs Madison 

Como apontado nesse texto, entender as origens do controle da constitucionalidade exige uma análise que vai muito além de um único julgado proferido pela Suprema Corte dos Estados Unidos no ano de 1803, afinal, o judicial review não deve ser atribuído a uma decisão específica ou a uma pessoa, uma vez que diversos precedentes auxiliaram na criação de um ambiente institucional favorável [13].

Tem-se que a associação entre a supremacia da Constituição e o controle judicial de constitucionalidade foi feita de forma precursora nos Estados Unidos, tendo sido Alexander Hamilton[14] um expoente que tratou desse tema no artigo “O Federalista n° 78”. Ele sustentou que o fato de o Poder Judiciário poder negar a validade a uma lei do Poder Legislativo não implica que os juízes sejam superiores aos legisladores, uma vez que não há que se falar em supremacia do Judiciário, mas sim em supremacia da Constituição, essa entendida como a vontade constituinte do povo. Essa argumentação de Hamilton foi inclusive retomada e reforçada por John Marshall ao julgar o caso Marbury vs Madison.

William Michael Treanor[15] possui festejado artigo que evidencia a existência de um número muito maior de casos de revisão judicial de leis em relação ao que era reconhecido pela doutrina. Após extensa análise de dezenas de julgados norte-americanos, ele que concluiu que os estatutos invalidados podiam ser reunidos em três categorias: (i) aqueles em o judiciário invalidava leis que afetassem os poderes dos tribunais; (ii) tribunais estaduais que invalidavam leis estaduais; e (iii) tribunais federais que invalidavam leis estaduais.

Um caso emblemático dentre os estudados pelo autor foi Lessee de Vanhorne v. Dorrance, julgado em 1795 pela circuit court dos Estados Unidos, situada no Distrito da Pensilvânia. Em debate estava a constitucionalidade da lei que autorizava o confisco de propriedade pelo Estado (confirming Act). A argumentação do juiz William Patterson envolveu elementos da linguagem próprios do judicial review, tais como a supremacia constitucional e os limites fixados pela Constituição. Ao final, a lei estadual foi declarada inconstitucional[16].

O magistrado apontou que a Constituição americana, diferentemente da Inglesa, era escrita e sintetizava de modo claro e preciso os princípios fundamentais para a organização social e política do país. Desse modo, representava a suprema lei do país, bem como um verdadeiro o parâmetro de legitimidade para o exercício do Poder Legislativo. Feito esse preâmbulo, assentou que o Poder Legislativo dos EUA, diferentemente da Inglaterra, não seria investido de um poder arbitrário que poderia apontar a própria fisionomia de uma Constituição. O Legislativo deveria, portanto, retirar a legitimidade e a autoridade da Constituição, sem a qual ele sequer existiria. Acrescentou que toda lei repugnante à Constituição deve ser declarada pela Corte como inválida[17].

 

1.3- O modelo Europeu 

O continente Europeu não aderiu ao controle de constitucionalidade nos moldes americanos. Segundo José Levi Mello do Amaral Júnior, uma das objeções decorre da incompatibilidade desse controle com a soberania do parlamento[18]. Além disso, uma outra tese refratária decorre da visão que a invalidação de um diploma legislativo por outro órgão representaria uma invasão do poder legislativo, isso porque a anulação de uma lei teria o mesmo caráter de generalidade da edição de uma lei, mas apenas com o sinal negativo, o que faz com que, em última análise, a anulação não deixe de ser uma função legislativa.

O referido autor delineia, de modo geral, as seguintes características do modelo europeu de controle de constitucionalidade: a) concentrado, uma vez que o Tribunal Constitucional detém o monopólio de decidir acerca da inconstitucionalidade da lei; b) abstrato, dado que a declaração de inconstitucionalidade incide sobre a lei em tese e não sobre um caso concreto; e c) erga omnes, uma vez que a decisão possui repercussão em toda sociedade.

 

2- O Controle de Constitucionalidade no Brasil 

O Direito brasileiro, à época da Proclamação da República, replicou elementos do ordenamento jurídico norte-americano, com destaque feito ao controle de constitucionalidade concreto e difuso das leis. Temos que há ressalvas a serem feitas nesse processo de cópia, tendo por base o que Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy[19] trata como uma simples transposição de ideias, em que há uma importação jurídica indevida, a partir de uma legitimação equivocada da história.

Nesse sentido, José Levi Mello do Amaral Júnior[20] aponta que restou ausente do modelo brasileiro o stare decisis, elemento intrínseco ao common law, gestado durante séculos, e que confere funcionalidade e coerência decisória ao modelo americano. Em razão disso, após o julgamento pelo Supremo Tribunal lFederal nada vinculava os demais magistrados no sentido do entendimento firmado.

A fim de sanar essa problemática, o legislador criou diversos sucedâneos normativos, como por exemplo: a) a atribuição de competência ao Senado Federal na Constituição de 1934 para suspender a execução de lei quando declarada inconstitucional pelo Poder Judiciário, dispositivo esse contido na Constituição Federal de 1988 no inciso X do art. 52; b) a regra do full bench na Constituição de 1934, hoje contida no art. 97 da atual Constituição e conhecida como cláusula de reserva do plenário; c) a efetiva adoção do controle concentrado e abstrato de leis por meio de representação do Procurador-Geral da República, após emenda constitucional em 1965; d) ampliação do rol de legitimados para propositura de ações de controle concentrado e abstrato com a promulgação da Constituição de 1988; e) a adoção das Súmulas Vinculantes com a Emenda Constitucional n° 45/2004.

O Supremo Tribunal Federal pode atualmente exercer o controle de constitucionalidade (i) em ações de competência originária (Constituição Federal, art. 102, I); em sede de recurso extraordinário (Constituição Federal, art. 102, III); e em processos objetivos, nos quais se veiculam as ações diretas. Dentre as ações disponíveis, temos: a Ação Direita de Inconstitucionalidade; a Ação Declaratória de Constitucionalidade; a Ação Direita de Inconstitucionalidade por Omissão (Lei n° 9.868, de 10 de novembro de 1999); a Ação Direta de Inconstitucionalidade Interventiva (Lei nº 12.562, de 23 de dezembro de 2011); e  a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (Lei n° 9882, de 3 de dezembro de 1999).

Entende José Levi Mello do Amaral Júnior[21] que o controle de constitucionalidade brasileiro não é misto, mas uma união de elementos de dois modelos, que convivem em paralelo, com influxos episódicos e eventuais. Além disso, é um sistema difuso, uma vez que todos os magistrados possuem competência para decisão de inconstitucionalidade. O autor leciona ainda que a vocação do nosso ordenamento para o controle concentrado e abstrato não resulta no descarte do controle difuso e concreto. Isso porque essa forma de controle proporciona uma teia de proteção contra atos inconstitucionais, além de ser útil na defesa em concreto de direitos fundamentais.

Igualmente, Elival da Silva Ramos[22] entende que não temos um sistema misto de controle de constitucionalidade, uma vez que não há permanente confluência entre os sistemas, mas sim variantes de um ou de outro. Para o autor, o sistema brasileiro é de matriz estadunidense, mas que, a partir da Constituição de 1934, teve grande incremento de complexidade com a adição de instrumentos do modelo europeu.

 

3- A atuação expansiva do Poder Judiciário por meio do Controle de Constitucionalidade

O Direito Constitucional Contemporâneo é marcado pelo Neoconstitucionalismo, o qual pode ser descrito por meio de três marcos fundamentais: o histórico, o teórico e o filosófico. O marco histórico desse novo direito foi, na Europa, o constitucionalismo que emergiu após a II Guerra Mundial. No Brasil, o marco histórico se deu com a promulgação da Constituição Federal de 1988. O marco teórico pode ser resumido no reconhecimento da força normativa da Constituição e na expansão da jurisdição constitucional. O marco filosófico é o pós-positivismo, que busca ir além da legalidade estrita, mas não despreza o direito posto. Busca-se fazer uma leitura moral do direito, mediante: a reaproximação entre o Direito e a Filosofia; a atribuição de normatividade de princípios; e o desenvolvimento de uma nova hermenêutica constitucional[23].

Antes de 1945 vigorava a supremacia do Poder Legislativo na maior parte da Europa, especialmente em decorrência da soberania do Parlamento como influência Inglesa; e a lei como expressão da vontade geral, por força da concepção francesa. Com a experiência americana da supremacia da Constituição e a constitucionalização de direitos fundamentais, esses passaram a ser protegidos pelo poder judiciário, também por meio do controle de constitucionalidade, no bojo da criação de inúmeros Tribunais Constitucionais mundo afora.

Atualmente, em nosso país, a realização concreta da supremacia axiológica e formal da Constituição envolve diferentes possibilidades e técnicas de interpretação[24], como por exemplo:
(i) a revogação de normas infraconstitucionais anteriores à Constituição; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de normas editadas após a promulgação da Constituição; (iii) a declaração de inconstitucionalidade por omissão, instando a atuação do legislador ou mesmo por meio de uma postura integrativa; e (iv) a interpretação conforme a Constituição, seja com a releitura de uma norma da maneira que melhor realize o sentido constitucional, seja com a declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto.

A ascensão do Poder Judiciário ganhou relevo após a promulgação da Constituição, que veio acompanhada do aumento na demanda por justiça em nossa sociedade. Isso se deu em virtude da redescoberta da cidadania, da conscientização das pessoas em relação aos seus direitos, mas, principalmente, pelo surgimento de novas ações e pela ampliação da legitimação ativa para a proteção de interesses.

Com isso, verificou-se uma expressiva judicialização de questões sociais e políticas, que podem ser exemplificados nos seguintes julgados do STF: a) equiparação das uniões homoafetivas às uniões estáveis heteroafetivas (ADPF 132 e ADI 4277); b) proibição do financiamento eleitoral por empresas privadas (ADI 4650); c) interrupção da gestação na hipótese de anencefalia (ADPF 54) ou durante o primeiro trimestre de gestação (HC 124.306); d) criminalização da homofobia (ADO 26 e MI 4733); e) Destinação de pelo menos 30% dos recursos dos fundos partidário e eleitoral para candidatura de mulheres (ADI 5617); e f) Determinação do STF ao Governo Federal para elaboração emergencial de plano de prevenção e contenção da COVID-19 em face de comunidades indígenas (ADPF 709).

A atuação expansiva do Poder Judiciário ao exercer o controle de constitucionalidade é tema recorrente na doutrina, que cuida de analisar a legitimidade democrática dessa função judicial, seus limites e suas possibilidades. Nesse contexto, os argumentos têm assumido formas diversas: ativismo versus contenção judicial; supremacia judicial versus constitucionalismo popular; e interpretativismo versus não ainterpretativismo[25].

De uma maneira geral, pode-se dizer que o pensamento mais progressista tende a ser mais favorável ao judicial review e a algum grau de expansão judicial; em oposição ao pensamento mais conservador, favoráveis à autocontenção judicial e ao constitucionalismo popular, que, por vezes, se baseiam em teorias como o originalismo e não interpretativismo[26].

 

4- Objeções à atuação expansiva do Poder Judiciário, por meio do Controle de Constitucionalidade

Desde as discussões entre federalistas e antifederalistas, no bojo da definição do desenho institucional a ser adotado pelos Estados Unidos, já havia o debate acerca da independência do judiciário e a forma como juízes seriam investidos nos cargos e como eventualmente poderiam ser removidos. “Brutus”, pseudônimo para um dos autores dos artigos antifederalistas, pontua que o mundo jamais teria visto um tribunal investido com tanto poder e fixado em uma posição de tão pouca responsabilidade. Além disso, externou sua preocupação ao apontar que esse tribunal poderia moldar livremente o conteúdo das leis, enquanto os erros e usurpações da Suprema Corte dos EUA seriam incontroláveis. A preocupação seminal dele era uma eventual ausência de limites por parte do Poder Judiciário, limites esses existentes no caso dos demais poderes[27].

Diversos são os expoentes que tecem objeções à atuação expansiva do Poder Judiciário, em detrimento da decisão tomada por representantes eleitos pelo povo. Jeremy Waldron é um deles e se notabilizou por apontar excessos no exercício do Judicial Review, conforme se observa nas obras Law and disagreement e The dignity of legislation e no artigo The core of the case against judicial review[28]. Ele afirma que, em países que não permitem que a legislação seja invalidada pelo judicial review, as próprias pessoas podem decidir por procedimentos legislativos ordinários se desejam, por exemplo, permitir o aborto, implementar uma ação afirmativa, ou autorizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Aduz que se houver discordâncias sobre qualquer dos assuntos, eles podem eleger representantes para deliberar e resolver a questão. Foi o que aconteceu na Grã Bretanha, a partir da década de 1960, quando o Parlamento debateu a questão do aborto, a legalização da conduta homossexual entre adultos e com consentimento, e a abolição da pena capital. Para ele, a qualidade desses debates em países como o Canadá, Austrália e Nova Zelândia torna absurda a afirmação de que os legisladores são incapazes de abordar tais questões de forma responsável.

Ele aduz que a revisão judicial não fornece, como muitas vezes se afirma, uma maneira de a sociedade se concentrar claramente sobre as verdadeiras questões em jogo quando os cidadãos discordam sobre direitos; ao contrário, os distrai com questões secundárias sobre precedentes, textos e interpretação. E isso, na sua visão, é politicamente ilegítimo, na medida em que há valores democráticos envolvidos. Ou seja, ao privilegiar a votação por maioria entre um pequeno número de juízes não eleitos e irresponsáveis, os direitos dos cidadãos comuns são subtraídos e são colocados de lado os estimados princípios de representação e igualdade política na resolução de questões sobre direitos[29].

Waldron contesta a submissão dos órgãos legislativos ao poder de revisão dos juízes mediante o exame de argumentos de duas espécies: a) argumentos de resultado; e b) argumentos procedimentais. No primeiro caso, trata-se de argumentos sobre os resultados de decisões judiciais proferidas em matéria de controle de constitucionalidade, comparados aos resultados de um sistema de soberania parlamentar. Isto é, de um sistema em que os atos dos órgãos legislativos não estejam sujeitos à revisão judicial. No segundo caso, trata-se de razões ligadas ao procedimento decisório do Judiciário e do Legislativo[30].

Ele busca demonstrar que os argumentos de resultado são, no mínimo, inconclusivos sobre o poder judicial de revisão, ou seja, nem o rechaçam, nem, tampouco, o exigem.  Além disso, pontua que como as decisões de órgãos legislativos são flagrantemente superiores às decisões judiciais no que se refere ao procedimento. A avaliação conjunta de ambos os argumentos leva à rejeição da judicial review. Esse mesmo controle, todavia, pode ser admitido em circunstâncias excepcionais, em que não sejam atendidas certas condições estabelecidas pelo próprio Waldron para a validade de suas objeções[31].

Leandro Martins Zanitelli[32] conclui em artigo que fez um estudo crítico sobre o The core of the case against judicial review:

 

O artigo de Waldron tem o mérito de estimular o debate sobre o quão desejável é o poder de revisão dos juízes. Seus argumentos, sobretudo os que se referem aos resultados prováveis de decisões judiciais em matéria constitucional, podem servir como subsídio aos que defendem maior “timidez” dos juízes na revisão dos atos praticados por órgãos legislativos eleitos.

 

No mesmo sentido, José Levi Mello do Amaral Júnior cita o Constitucionalista e
ex-integrante da Corte Constitucional Italiana, Gustavo Zagrebelsky, que atribui grande relevo para que os Tribunais ouçam o mundo exterior. Para ele:

 

“A função da Corte é política, mas, ao mesmo tempo, não pertence à política; é essencial ao nosso modo de entender a democracia, mas, ao mesmo tempo, não vem da democracia. Compreender esse aparente contrassenso não é fácil”[33].

Entende-se que, por vezes, incumbe às Supremas Cortes um humilde recolhimento, de modo que o varejo da política cotidiana não comprometa o prudente e comedido exercício de suas competências constitucionais, que no caso do STF estão longe de serem poucas, dada o enorme volume processual que alcança o topo da jurisdição em grau de recurso. É necessário, portanto, uma postura de humildade em face da Constituição e da democracia, com rigoroso respeito à lógica da organização dos poderes[34].

Humberto Ávila[35] tece críticas às teorias trazidas pelo movimento do neoconstitucionalismo, para aduzir que elas não encontram suporte no ordenamento constitucional de nosso país. Para ele, não se pode concluir que o tipo normativo prevalente seja o principiológico em detrimento das regras. A Constituição é um complexo tanto de regras quanto de princípios, cada qual com funções e eficácias complementares. Ademais, não se pode sustentar que a justiça particular deva prevalecer sobre a justiça geral, sob pena de frustrar a função estabilizadora de conflitos morais e reduzir as arbitrariedade e as incertezas. Além disso, não se pode admitir que o Poder Judiciário deva se sobrepor ao Legislativo. Isso porque, em uma sociedade plural e complexa, é o Poder Legislativo o local onde se melhor pode obter a participação e a consideração da opinião de todos. Desse modo, assevera o autor:

 

O “neoconstitucionalismo”, baseado nas mudanças antes mencionadas, aplicado no Brasil, está mais para o que se pode denominar, provocativamente, de uma espécie enrustida de “não-constitucionalismo”: um movimento ou uma ideologia que barulhentamente proclama a supervalorização da Constituição enquanto silenciosamente promove a sua desvalorização[36].

 

É consabido que Ronald Dworking seja um grande defensor do papel a ser desempenhado pelas cortes na solução moral de uma controvérsia, em busca da defesa de direitos eventualmente não protegidos pela maioria. José Levi Mello do Amaral Júnior[37] aborda a temática ao comentar artigo do filósofo e jurista norte-americano intitulado de Equality, Democracy and Constitucion[38] e já inicia com a indagação se seria o controle de constitucionalidade antidemocrático.

Dworking[39] busca refutar a ideia de ausência de legitimidade popular por parte dos magistrados na decisão de temas fundamentais da sociedade, alegando que diversos agentes públicos não eleitos, a exemplo dos Secretários de Estado, da Defesa ou do Tesouro, podem, em um curtíssimo espaço de tempo, causar mais dano que os juízes em toda sua vida jurisdicional. Temos que o argumento supra merece ressalvas, uma vez que os agentes mencionados respondem ao Presidente eleito, o qual se submete periodicamente a escrutínio popular, ao contrário dos membros da Suprema Corte[40].

Ronald Dworking[41] confere grande relevo às disposições limitativas da Constituição, quais sejam, aquelas que estabelecem limites ao poder que a maioria possui sobre o arranjo estrutural definido. Se filia, portanto, à posição de que quando direitos individuais são ameaçados, a sua proteção se revela ainda mais importante do que atender à vontade da maioria. Defende, inclusive, que essa proteção possa se dar com a atuação da Suprema Corte ao conferir força plena aos princípios morais.

A respeito dessa abordagem, Jeremy Waldron[42] rebate argumentos do que seria uma contradição de Dworkin:

 

“Não se pode dar nenhum peso à afirmação de que os tribunais podem, a pretexto de uma incompatibilidade, substituir as intenções constitucionais do legislativo por seus próprios desejos. (…) Caso se dispusessem a exercer a vontade em vez do julgamento, isso levaria igualmente à substituição do desejo do corpo legislativo pelo seu próprio. Se essa observação provasse alguma coisa, seria que não deve haver nenhum juiz além do próprio legislativo.”

 

Temos que a principal contradição de Dworkin está em minimizar a importância da decisão majoritária própria ao legislativo na elaboração das normas, e, ato contínuo, confiar a decisão, especialmente em temas acerca da moralidade política, a um Tribunal, órgão judicial coletivo cujas decisões também são tomadas por meio de um princípio majoritário, mas cujos membros não são democraticamente eleitos. Além disso, eles não seriam sequer, em última análise, responsáveis perante a sociedade[43].

Outra contradição reside no fato de que Dworkin cita Rousseau para robustecer a sua teoria. Ocorre que a vontade geral, da teoria de Rousseau, requer manifestação popular direta. Na vida real, a sua melhor aproximação é encontrada no debate político próprio às instituições que abrigam políticos eleitos. A solução de Dworkin, portanto, remete a uma técnica aristocrática de decidir, uma vez que admite que as questões de moralidade política sejam deslocadas da esfera parlamentar para a judicial.

José Levi Mello do Amaral Júnior[44] aduz que um mito do Direito Constitucional está refletido na frase “The Constitution means what the Supreme Court says it means” atribuída ao Chief Justice Charles Evans Hughes, que de forma rotineira é adaptada ao nosso país para a expressão: “A constituição é o que o Supremo diz que ela é”.

Mesmo que incumba ao STF, precipuamente, a guarda da Constituição, consoante insculpido no caput do art. 102 da Constituição Federal, não se pode depreender que essa atuação não tome em consideração a compreensão do próprio povo acerca da Constituição. Desta feita, em um regime efetivamente democrático, em que o poder emana do povo, não parece fazer sentido a frase do magistrado americano.  Como conclusão oposta à proferida pelo Chief Justice, o autor cita Lary Kramer[45]:

 

“(…) para controlar a Suprema Corte, necessitamos primeiro reclamar a Constituição para nós mesmos. Isso significa repudiar publicamente os juízes da Corte que dizem que eles, e não nós, possuem a máxima autoridade para dizer o que significa a Constituição.”

 

A superação do horror da escravidão, com emenda à constituição americana, fruto de enorme empenho de Abraham Lincoln; e a minoração da segregação racial, após o contexto de movimento pacifista liderado por Martin Luther King Jr., que culminou com o Civil Rights Act, são exemplos emblemáticos de como as instituições políticas devem se amoldar ao constitucionalismo democrático, aquele que vem do povo[46].

O Constitucionalista argentino Roberto Gargarella[47] pontua que o caso Marbury vs Madison pode ter servido, de início, para abrir o direito à discussão de temas cruciais, mas, com o passar do tempo, esse célebre caso acabou convertendo-se em fechamento de caminhos. Isso porque, para ele, o Direito passou a ser pensado em larga medida como um produto de elites políticas e judiciais, mediante revisões exclusivas de uma parte do corpo judicial, que, por seu turno, tomou para si a última palavra institucional e o monopólio da interpretação constitucional.

Esse mesmo autor, em outra obra[48], pontua que se o Poder Legislativo e o Executivo são legitimados por sua representação democrática e popular, de onde viria a legitimidade de juízes não eleitos para invalidar judicialmente os atos dos demais Poderes? Como aceitar que a última palavra acerca da constitucionalidade fique nas mãos de pouquíssimos magistrados? Se o povo não detém qualquer controle sobre o Poder Judiciário, não estaria abrindo a possibilidade de que a vontade do povo seja substituída pela vontade de alguns magistrados?

Larry Kramer[49], por sua vez, faz críticas contundentes ao atual distanciamento da participação do povo na dinâmica do Judicial Review e pontua quem nem sempre o quadro foi como esse. Para tanto, descreve diversos casos em que o povo americano, mesmo antes do Marbury Vs Madison, participou ativamente da implementação da Constituição e exerceu o direito de interpretar os significados da carta política.

O autor defende que essa participação popular ativa e necessária seja resgatada na dinâmica de atribuição do significado da constituição e na prática do direito constitucional contemporâneo. Além disso, pontua que o constitucionalismo popular não nega aos juízes e tribunais o poder de exercer o controle de constitucionalidade. O que ele combate é que apenas esses tenham a palavra final sobre o que é a Constituição, quando essa deveria ser uma tarefa que incumbe também aos demais poderes e ao próprio povo.

Ainda a esse respeito, Mark Tushnet[50], expoente do constitucionalismo democrático, pontua que os desacordos morais de uma sociedade devem ser objeto de uma discussão robusta e democrática, e não simplesmente entregues para decisão pelo Poder Judiciário, por esvaziarem os deveres e competências dos representantes eleitos e do próprio povo. Isso tem também o efeito deletério de promover a irresponsabilidade dos legisladores, que por vezes acabam por se eximir de tomares decisões fundamentais.

Para ele, o Constitucionalismo popular evidencia que a Constituição não pode ser tida como uma peça técnica, manejada apenas por juristas, de forma afastada do povo. Ao revés, os compromissos mais elevados de uma sociedade só podem ser delineados mediante a conjunção da própria sociedade, com os demais atores, instituições e representantes.

Miguel Gualano de Godoy e Vera Karam de Chueiri[51] apontam que incumbe ao judiciário o controle de constitucionalidade das leis, desde que seja mais um ator na tarefa de atribuição de sentido à Constituição, e não como intérprete exclusivo. Isso porque a supremacia judicial desacompanhada dos necessários diálogos institucionais com os demais poderes, esses compostos por representantes eleitos pelo povo, pode ensejar que a vida pública e coletiva da sociedade deixe de ser uma discussão democrática e passe apenas a espelhar as posições de alguns ministros da mais alta corte.

Incumbe aqui também fazer uma ressalva de que a crítica à atuação por vezes excessivamente expansiva do Poder Judiciário em face dos atos dos demais poderes não importa uma exaltação à atuação do Poder Legislativo e Executivo, que, inegavelmente e de longa data, apresentam inúmeras mazelas e, por isso, gozam de desprestígio junto ao povo brasileiro. O que se defende é que a Constituição seja produto das decisões de juízes e tribunais, dos representantes eleitos e, principalmente, do povo. [52]

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do presente trabalho buscou-se examinar o arcabouço legal, a jurisprudência e principalmente a doutrina de modo a discorrer sobre os antecedentes e modelos do controle de constitucionalidade, como se dá essa sistemática em nosso país, e, especialmente, as objeções à atuação expansiva do Poder Judiciário, por meio do Controle de Constitucionalidade. Desse modo, as principais conclusões que podem ser tiradas, tomadas com base nos dados e argumentos deduzidos, podem ser resumidas nos seguintes tópicos:

  1. O controle de constitucionalidade, muito embora seja uma importante contribuição decorrente da supremacia da Constituição e do desenho institucional norte-americano, que culminou no caso Marbury vs Madison, primeiro episódio de invalidação de lei federal pela Suprema Corte dos EUA, não pode ser visto como um evento isolado, mas sim como fruto de um fenômeno que foi amadurecido por muitos anos de história, e não apenas americana, mas universal.
  2. Importante argumento favorável ao controle de constitucionalidade vem de Alexander Hamilton, um dos federalistas, para quem o fato de o Poder Judiciário poder negar a validade a uma lei do Poder Legislativo não implica que os juízes sejam superiores aos legisladores, uma vez que não há que se falar em supremacia do Judiciário, mas sim em supremacia da Constituição, essa entendida como a vontade constituinte do povo. Esses argumentos foram retomados e reforçados por John Marshall no caso Marbury vs Madison.
  3. Antes do caso Marbury vs Madison, os EUA já contavam com inúmeros precedentes de revisão judicial, que podem ser divididos entre os que (i) o judiciário invalidava leis que afetassem os poderes dos tribunais; (ii) os tribunais estaduais que invalidavam leis estaduais; e (iii) os tribunais federais que invalidavam leis estaduais. A análise desses julgados nos permite concluir que esses diversos precedentes auxiliaram na criação de um ambiente institucional favorável ao judicial review nos EUA.
  4. O Direito brasileiro replicou elementos do ordenamento jurídico norte-americano, com destaque feito ao controle de constitucionalidade concreto e difuso das leis, mas, após, teve grande incremento de complexidade com a adição de instrumentos do modelo europeu. A despeito disso, temos que o controle de constitucionalidade brasileiro não é misto, mas a união de elementos de dois modelos, que convivem em paralelo, com influxos episódicos e eventuais. Em outras palavras, não pode ser misto, uma vez que não há permanente confluência entre os sistemas, mas sim variantes de um ou de outro.
  5. Com a promulgação da Constituição de 1988 e o Neoconstitucionalismo, evidenciou-se uma ascensão do Poder Judiciário, que veio acompanhada do aumento na demanda por justiça em nossa sociedade. Isso se deu em virtude da redescoberta da cidadania, da conscientização das pessoas em relação aos seus direitos, mas, principalmente, pelo surgimento de novas ações e pela ampliação da legitimação ativa para a proteção de interesses. Com isso, verificou-se uma expressiva judicialização de questões sociais e políticas.
  6. A Constituição de 1988 definiu o STF como guardião da Constituição e atribuiu à corte competências de revisão judicial. Fora de cogitação, portanto, me manifestar pela extinção dessa medida. Por outro lado, não posso concluir que apenas o STF deva estabelecer o significado de Constituição, sem a efetiva participação dos demais poderes e da própria sociedade.
  7. Conclui-se que a supremacia judicial desacompanhada dos necessários diálogos institucionais com os demais poderes, esses compostos por representantes eleitos pelo povo, pode ensejar o fato de que a vida pública e coletiva da sociedade deixe de ser uma discussão democrática e passe apenas a espelhar as posições de alguns ministros da mais alta corte.
  8. As objeções à expansão da atuação do Poder Judiciário no bojo do controle de Constitucionalidade têm o condão de estimular o debate sobre os limites desse poder de revisão. E isso pode servir de subsídios para uma postura mais autocontida, parcimoniosa, equilibrada e que privilegie os diálogos institucionais em detrimento da proliferação de medidas de revisão de atos emanados por órgãos compostos por representantes eleitos.

 

REFERÊNCIAS 

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[1]MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, baron de la Brède et de. O espírito das leis, tradução de Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues, Brasília: UnB, 1995, p. 118-125 (Capítulo VI do Livro XI).

[2]AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Sobre a organização de poderes em Montesquieu: Comentários ao Capítulo VI do Livro XI de “O espírito das leis” in Revista dos Tribunais, vol. 868, 2008, p. 53-68.

[3]AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Controle de constitucionalidade: evolução brasileira determinada pela falta do stare decisis in Revista dos Tribunais, vol. 920, 2012, p. 133-149.

[4]CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Tradução de Aroldo Plínio Gonçalves. 2. ed. reimpressão. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999.

[5]AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Controle de constitucionalidade: evolução brasileira determinada pela falta do stare decisis in Revista dos Tribunais, vol. 920, 2012, p. 133-149.

[6]CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Tradução de Aroldo Plínio Gonçalves. 2. ed. reimpressão. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999.

[7]AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Controle de constitucionalidade: evolução brasileira determinada pela falta do stare decisis in Revista dos Tribunais, vol. 920, 2012, p. 133-149.

[8]MARBURY v. MADISON, 5 U.S. 137 (1803). Disponível em:  https://www.oyez.org/cases/1789-1850/5us137. Acesso em 14 fev. 2021.

[9]GODOY, Miguel Gualano; CHUEIRI, Vera Karam. Marbury vs Madison: uma releitura crítica. Curitiba: Juruá, 2017.

[10]MARBURY v. MADISON, 5 U.S. 137 (1803). Disponível em:  https://www.oyez.org/cases/1789-1850/5us137. Acesso em 14 fev. 2021.

[11]AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Controle de constitucionalidade: evolução brasileira determinada pela falta do stare decisis in Revista dos Tribunais, vol. 920, 2012, p. 133-149.

[12]RENQUIST, William H. The Supreme Court. New York: Vintage Books, 2009.

[13]CONTINENTINO, Marcelo Casseb. História do judicial review: O mito de Marbury. Revista de Informações Legislativas. Brasília a. 53 n. 209 jan./mar. 2016 p. 115-132. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/520000. Acesso em 22 fev. 2021.

[14]HAMILTON, Alexander. Artigo federalista n. LVXXVIII in Os artigos federalistas, Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1993, p. 478-493.

[15]TREANOR, William Michael. Judicial review before Marbury in Stanford Law Review, Vol-ume 58, abril de 2010, p. 455-562. Disponível em: http://stanfordlawreview.org/wp-content/uploads/sites/3/2010/04/treanor.pdf. Acesso em 23 fev. de 2021.

[16]CONTINENTINO, Marcelo Casseb. História do judicial review: O mito de Marbury. Revista de Informações Legislativas. Brasília a. 53 n. 209 jan./mar. 2016 p. 115-132. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/520000. Acesso em 22 fev. 2021.

[17]CONTINENTINO, Marcelo Casseb. História do judicial review: O mito de Marbury. Revista de Informações Legislativas. Brasília a. 53 n. 209 jan./mar. 2016 p. 115-132. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/520000. Acesso em 22 fev. 2021.

[18]AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Controle de constitucionalidade: evolução brasileira determinada pela falta do stare decisis in Revista dos Tribunais, vol. 920, 2012, p. 133-149.

[19]GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e História: uma Relação Equivocada. Londrina: Humanidades, 2004.

[20]AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Controle de constitucionalidade: evolução brasileira determinada pela falta do stare decisis in Revista dos Tribunais, vol. 920, 2012, p. 133-149.

[21]AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Controle de constitucionalidade: evolução brasileira determinada pela falta do stare decisis in Revista dos Tribunais, vol. 920, 2012, p. 133-149.

[22]RAMOS, Elival da Silva. Controle de constitucionalidade no Brasil: perspectivas de evolução, São Paulo: Saraiva, 2010.

[23]BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito. In O novo direito constitucional brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2013.

[24]BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito. In O novo direito constitucional brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2013.

[25]BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito. In O novo direito constitucional brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2013.

[26]BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito. In O novo direito constitucional brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2013.

[27]ARGUELHES, Diego Werneck. O Supremo que não erra in A Razão e o Voto: Diálogos constitucionais com Luís Roberto Barroso” (Oscar Vilhena Vieira e Rubens Glezer (orgs.). São Paulo: Saraiva, 2017.

[28]WALDRON, Jeremy. The core of the case against judicial review in The Yale Law Journal, n. 115, p. 1346-1406. Disponível em: https://digitalcommons.law.yale.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=5011&context=ylj. Acesso em 25 fev. 2021.

[29]WALDRON, Jeremy. The core of the case against judicial review in The Yale Law Journal, n. 115, p. 1346-1406. Disponível em: https://digitalcommons.law.yale.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=5011&context=ylj. Acesso em 25 fev. 2021.

[30]WALDRON, Jeremy. The core of the case against judicial review in The Yale Law Journal, n. 115, p. 1346-1406. Disponível em: https://digitalcommons.law.yale.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=5011&context=ylj. Acesso em 25 fev. 2021.

[31]WALDRON, Jeremy. The core of the case against judicial review in The Yale Law Journal, n. 115, p. 1346-1406. Disponível em: https://digitalcommons.law.yale.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=5011&context=ylj. Acesso em 25 fev. 2021.

[32]ZANITELLI, Leandro Martins. Waldron e o controle judicialde constitucionalidade das leis: um estudo crítico sobre The core of the case againstjudicial review. Direito e Democracia, v.9, n.1, jan./jun. 2008, p. 16.

[33]ZAGREBELSKY, Gustavo. Principî e voti. La Corte Costituzionale e la politica. Torino: Einaudi, 2005 p.
3-4, apud AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. O Supremo Tribunal Federal: composição, organização e competências in Revista Jurídica da Presidência, volume n. 21, 2019, p. 411-425.

[34]AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. O Supremo Tribunal Federal: composição, organização e competências in Revista Jurídica da Presidência, volume n. 21, 2019, p. 411-425.

[35]ÁVILA, Humberto. “Neoconstitucionalismo”: entre a “ciência do direito” e o “direito da ciência” in Revista Eletrônica de Direito do Estado, n. 17, Salvador: Instituto Brasileiro de Direito Público, 2009.

[36]ÁVILA, Humberto. “Neoconstitucionalismo”: entre a “ciência do direito” e o “direito da ciência” in Revista Eletrônica de Direito do Estado, n. 17, Salvador: Instituto Brasileiro de Direito Público, 2009, p. 19.

[37]AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Ronald Dworkin e a sua contradição majoritária in Consultor Jurídico (https://www.conjur.com.br), 23 de fevereiro de 2014, ISBN: 1809-2829.

[38]DWORKIN, Ronald. Equality, Democracy, and Constitution in Alberta Law Review, n. XXVIII, 1989-1990, p. 324-346. Disponível em: https://www.albertalawreview.com/index.php/ALR/article/view/1605/1594. Acesso em 26 fev. 2021.

[39]DWORKIN, Ronald. Equality, Democracy, and Constitution in Alberta Law Review, n. XXVIII, 1989-1990, p. 324-346. Disponível em: https://www.albertalawreview.com/index.php/ALR/article/view/1605/1594. Acesso em 26 fev. 2021.

[40]AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Ronald Dworkin e a sua contradição majoritária in Consultor Jurídico (https://www.conjur.com.br), 23 de fevereiro de 2014, ISBN: 1809-2829.

[41]DWORKIN, Ronald. Equality, Democracy, and Constitution in Alberta Law Review, n. XXVIII, 1989-1990, p. 324-346. Disponível em: https://www.albertalawreview.com/index.php/ALR/article/view/1605/1594. Acesso em 26 fev. 2021.

[42]WALDRON, Jeremy. The core of the case against judicial review in The Yale Law Journal, n. 115, p. 1346-1406.

[43]AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Ronald Dworkin e a sua contradição majoritária in Consultor Jurídico (https://www.conjur.com.br), 23 de fevereiro de 2014, ISBN: 1809-2829.

[44]AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. A Constituição do povo e a sua afirmação popular in Consultor Jurídico (https://www.conjur.com.br), 06 de outubro de 2013, ISBN: 1809-2829.

[45]KRAMER, Larry. Constitucionalismo popular e controle de constitucionalidade, Madrid: Mar-cial Pons, 2011, p. 302.

[46]AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. A Constituição do povo e a sua afirmação popular in Consultor Jurídico (https://www.conjur.com.br), 06 de outubro de 2013, ISBN: 1809-2829.

[47]GARGARELLA, Roberto. Prefácio. In: GODOY, Miguel Gualano; CHUEIRI, Vera Karam. Curitiba: Juruá, 2017.

[48]GARGARELLA, Roberto. Crítica de la Constitución: sus zonas oscuras. Buenos Aires: Capital Intelectual, 2004.

[49]KRAMER, Larry. The People Themselves: popular constitucionalim and Judicial Review. New York: Oxford University Press, 2004.

[50]TUSHNET, Mark. Taking the Constitution away from the Courts. Princeton: Princeton University Press, 1999.

[51]GODOY, Miguel Gualano; CHUEIRI, Vera Karam. Marbury vs Madison: uma releitura crítica. Curitiba: Juruá, 2017.

[52]GODOY, Miguel Gualano de. Devolver a Constituição ao povo: críticas à supremacia judicial e diálogos institucionais. Belo Horizonte: Fórum, 2017.

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