A venda integral como meio de Recuperação Judicial

A possibilidade de venda integral na recuperação judicial é uma novidade introduzida pela Lei nº 14.112/2020, que alterou a Lei de Recuperação de Empresas e Falências. A versão original da LRF reservava ao processo falimentar, exclusivamente, a venda integral blindada.

Para noções mais básicas a respeito da Recuperação judicial, recomendamos a leitura do artigo disponibilizado no link: https://moac.com.br/recuperacao-judicial-nocoes-basicas/

 

I- DOS MEIOS DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL  

O art. 50 da LRF estabelece um rol exemplificativo (não exaustivo) de meios de recuperação judicial, observada a legislação pertinente a cada caso:

I – concessão de prazos e condições especiais para pagamento das obrigações vencidas ou vincendas;

II – cisão, incorporação, fusão ou transformação de sociedade, constituição de subsidiária integral, ou cessão de cotas ou ações, respeitados os direitos dos sócios, nos termos da legislação vigente;

III – alteração do controle societário;

IV – substituição total ou parcial dos administradores do devedor ou modificação de seus órgãos administrativos;

V – concessão aos credores de direito de eleição em separado de administradores e de poder de veto em relação às matérias que o plano especificar;

VI – aumento de capital social;

VII – trespasse ou arrendamento de estabelecimento, inclusive à sociedade constituída pelos próprios empregados;

VIII – redução salarial, compensação de horários e redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva;

IX – dação em pagamento ou novação de dívidas do passivo, com ou sem constituição de garantia própria ou de terceiro;

X – constituição de sociedade de credores;

XI – venda parcial dos bens;

XII – equalização de encargos financeiros relativos a débitos de qualquer natureza, tendo como termo inicial a data da distribuição do pedido de recuperação judicial, aplicando-se inclusive aos contratos de crédito rural, sem prejuízo do disposto em legislação específica;

XIII – usufruto da empresa;

XIV – administração compartilhada;

XV – emissão de valores mobiliários;

XVI – constituição de sociedade de propósito específico para adjudicar, em pagamento dos créditos, os ativos do devedor.

XVII – conversão de dívida em capital social;

XVIII – venda integral da devedora, desde que garantidas aos credores não submetidos ou não aderentes condições, no mínimo, equivalentes àquelas que teriam na falência, hipótese em que será, para todos os fins, considerada unidade produtiva isolada.

 

II- A VENDA INTEGRAL

Nota-se já de início que a LRF, agora, faz referência expressa à possibilidade de venda integral ou de unidades produtivas isoladas como forma de recuperação judicial.

O parágrafo único do art. 60 esclarece ainda que:

O objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor de qualquer natureza, incluídas, mas não exclusivamente, as de natureza ambiental, regulatória, administrativa, penal, anticorrupção, tributária e trabalhista, observado o disposto no § 1º do art. 141 desta Lei.     

Embora a LRF seja clara em relação também aos eventuais créditos trabalhistas, em razão da conhecida insegurança jurídica vigente na Justiça do Trabalho, cumpre-nos esclarecer algumas questões.

A ausência de sucessão quanto aos créditos trabalhistas fora alvo quando da promulgação da Lei n. 11.101/2005 da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3934. Vejamos o que definiu o STF, contudo:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGOS 60, PARÁGRAFO ÚNICO, 83, I E IV, c, E 141, II, DA LEI 11.101/2005. FALÊNCIA E RECUPERAÇÃO JUDICIAL. INEXISTÊNCIA DE OFENSA AOS ARTIGOS 1º, III E IV, 6º, 7º, I, E 170, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL de 1988. ADI JULGADA IMPROCEDENTE.

(…)

II – Não há, também, inconstitucionalidade quanto à ausência de sucessão de créditos trabalhistas.

(…)

V – Ação direta julgada improcedente.

(ADI 3934, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 27/05/2009, DJe-208  DIVULG 05-11-2009  PUBLIC 06-11-2009 EMENT VOL-02381-02  PP-00374 RTJ VOL-00216-01 PP-00227)

Embora a decisão tenha sido clara, apoiadas em parte minoritária da doutrina, alguns juízes do trabalho, em decisões isoladas, acabam por vezes reconhecendo a ocorrência de sucessão trabalhista.

Tal fato ocorre em razão da autonomia da disciplina do Direito do Trabalho. Dentro do arcabouço normativo laboral, há o artigo 10 e 448 da Consolidação das Leis do Trabalho, que, sucintamente, diz que a mudança na estrutura jurídica da empresa não afetará os contratos de trabalho e os direitos adquiridos por seus empregados.

Nesse sentido, juízes do trabalho, munidos de um sentimento altamente protecionista, entendem pela aplicação da legislação trabalhista, ignorando o disposto na lei falimentar.

De todo modo, a jurisprudência do STJ e do STF é firme no sentido de excluir a sucessão trabalhista e afirmar a competência do juízo da recuperação judicial para decidir qualquer questão sobre eventual efeito da venda feita com base no art. 60, parágrafo único, da LRE.

A possibilidade de venda integral sem assunção de dívidas ou sucessão nas obrigações pelo adquirente, como dito, é uma novidade introduzida pela Lei nº 14.112/2020, que alterou a Lei de Recuperação de Empresas e Falências.

O art. 142, por sua vez, estabelece que a alienação de bens dar-se-á por uma das seguintes modalidades:

I – leilão eletrônico, presencial ou híbrido;

II – (revogado);

III – (revogado);

IV – processo competitivo organizado promovido por agente especializado e de reputação ilibada, cujo procedimento deverá ser detalhado em relatório anexo ao plano de realização do ativo ou ao plano de recuperação judicial, conforme o caso;

V – qualquer outra modalidade, desde que aprovada nos termos desta Lei. (Redação dada pela Lei nº 14.112, de 2020

Diante das formas de alienação elencadas pelo art. 142, duas importantes questões emergem: seria possível, à luz da LRF, a venda direta integral da recuperanda e se estaria também aqui afastada a sucessão das dívidas diversas.

Uma questão muito debatida quando da promulgação da Lei nº 11.101/05 era a necessidade ou não da ocorrência de leilão judicial para que a aquisição de uma unidade produtiva isolada (UPI). Isso porque, na sua redação original, o dispositivo previa a realização de hasta pública e admitia três formas de venda (leilão, propostas fechadas e pregão).

Entretanto, em julgamento de REsp paradigma para o tema, o STJ admitiu, excepcionalmente, que a venda de filial ou unidade produtiva isolada fosse feita de forma direta. Vejamos o acórdão:

RECURSO ESPECIAL. EMPRESARIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. ALIENAÇÃO. UNIDADES PRODUTIVAS ISOLADAS. HASTA PÚBLICA. REGRA. OUTRA MODA-LIDADE. EXCEÇÃO. REQUISITOS. COMPROVAÇÃO. NECESSIDADE. (…)

    1. Cinge-se a controvérsia a definir se a alienação de ativos na forma de unidade produtiva isolada pode se dar por meio diverso do previsto nos artigos 60 e 142 da Lei nº 11.101/2005.
    2. A alienação de unidades produtivas isoladas prevista em plano de recuperação judicial aprovado deve, em regra, se dar na forma de alienação por hasta pública, conforme o disposto nos artigos 60 e 142 da Lei nº 11.101/2005.
    3. A adoção de outras modalidades de alienação, na forma do artigo 145 da Lei nº 11.101/2005, só pode ser admitida em situações excepcionais, que devem estar explicitamente justificadas na proposta apresentadas aos credores. Nessas hipóteses, as condições do negócio devem estar minuciosamente descritas no plano de recuperação judicial que deve ter votação destacada deste ponto, ser aprovado por maioria substancial dos credores e homologado pelo juiz.
    4. No caso dos autos, a venda direta da unidade produtiva isolada foi devidamente justificada, tendo sido obedecidos os demais requisitos que autorizam o afastamento da alienação por hasta pública.
    5. Recurso especial não provido.

(REsp 1.689.187/RJ, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 05/05/2020, DJe 11/05/2020)

Com a nova redação data ao dispositivo pela Lei nº 14.112/2020, que agora autoriza a venda por “qualquer outra modalidade, desde que aprovada nos termos desta Lei” parece-nos ser clara a possibilidade de venda direta, nos termos do precedente do STJ.

Por fim e não menos importante, devemos analisar se, em caso de venda direta, também estaria afastada a sucessão das dívidas mencionadas. A questão é relevante, porquanto parte importante da doutrina, antes da reforma do final de 2020, asseverava que a sucessão seria obrigatória, em casos de venda fora das hipóteses previstas em lei.

Ocorre que, como visto, o art. 142 agora passa a prever de maneira expressa que a alienação de bens dar-se-á por qualquer outra modalidade (rol exemplificativo). Assim, combinando o exposto com o § 8º do art. 142, que determina que “todas as formas de alienação de bens realizadas de acordo com esta Lei serão consideradas, para todos os fins e efeitos, alienações judiciais”, pode-se concluir,  com certa segurança, que: não haverá sucessão das dívidas discriminadas pela LRF pelo adquirente em caso de venda direta integral da recuperanda.

Cabe registrar, entretanto, que ainda não há jurisprudência sobre a venda integral como forma de recuperação judicial, em razão do pouco tempo em vigor da autorização legislativa.

Alerta-se, ainda, que, quanto aos credores não sujeitos ou não aderidos à recuperação judicial, à eles devem ser garantidas condições, no mínimo, equivalentes às que teriam na falência. Tal obrigação acaba por dificultar sobremaneira a aprovação de uma venda integral quando há algum credor dissidente. O próprio estudo quanto ao que seria uma “condição equivalente na falência” é bastante complexo.

Registra-se, por fim, que, na alienação conjunta ou separada de ativos, inclusive da empresa ou de suas filiais, promovida sob qualquer das modalidades de que trata o art. 142: “todos os credores, observada a ordem de preferência definida no art. 83 desta Lei, sub-rogam-se no produto da realização do ativo.”

 

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