A pessoa jurídica como consumidora

É de conhecimento comum dos empreendedores a sua sujeição ao Código de Defesa do Consumidor nas relações que entabula com seus clientes, seja no fornecimento de produtos, seja na prestação de serviços .

O que muitos não sabem é que, por vezes, o empresário individual e até mesmo a sociedade empresária também poderão ser consideradas consumidores e, portanto, gozarem das vantagens do sistema consumerista.

Você sabe quando? Sabe mesmo quais são as vantagens?

Façamos um voo panorâmico sobre o assunto antes de enfrentarmos tais pontos.

 

  1. O Código de Defesa do Consumidor (CDC)

A Constituição Federal Brasileira de 1988 estabeleceu como dever do Poder Público a defesa do consumidor. A partir do mandamento constitucional, em 1990, foi criada a Lei 8.078, mais conhecida como Código de Defesa do Consumidor, que estabelece normas de proteção e defesa do consumidor.

O  art. 4 do CDC estabelece que  a Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo.

Para a consecução desses objetivos, o Código estabelece diversos princípios, dos quais destacamos para o objetivo do presente artigo:

  1. reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;
  2. harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores; e
  3. educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo.

Em suma,  o Código de Defesa do Consumidor tem por objetivo primordial proteger e defender o consumidor que, em regra, é a parte vulnerável nas relações de consumo.

A vulnerabilidade do consumidor pode ser técnica, jurídica ou econômica. A vulnerabilidade técnica baseia-se na ideia de que o consumidor não tem conhecimento específico sobre o produto ou serviço que está adquirindo.

A vulnerabilidade jurídica refere-se à falta de conhecimento que permita ao consumidor entender as consequências jurídicas daquilo a que se obriga.  Além disso, significa que o consumidor não possui a mesma estrutura jurídica e acesso a profissionais que o fornecedor.

Por fim, a vulnerabilidade econômica significa que o consumidor não está na mesma posição econômica que o fornecedor, não dispondo dos mesmos recursos que uma grande empresa, por exemplo, possui. Aqui, há um desequilíbrio de poder econômico, que se traduz na dificuldade de negociar e de reclamar.

Fica claro já aqui que a vulnerabilidade é o conceito que fundamenta todo o sistema consumerista, o qual visa, em última análise, promover o equilíbrio contratual.

A vulnerabilidade da pessoa física consumidora é presumida (absoluta), mas a da pessoa jurídica deve ser aferida no caso concreto. Mas, antes de aprofundarmos essa questão, lembremos das principais vantagens do sistema para o consumidor.

 

  1. Das vantagens para o consumidor

O sistema consumerista estabelece amplos direitos e garantias ao consumidor, em razão dos objetivos que acima já expomos. Aqui, vamos rememorar apenas dois importantes institutos para pessoas físicas e também jurídicas que se encontrem na posição de consumidor: 1. responsabilidade objetiva do fornecedor; e 2. Inversão do ônus da prova.

 

2.1. Da responsabilidade objetiva

De acordo com o Código de Defesa do Consumidor, o fornecedor de produtos ou serviços possui responsabilidade objetiva (arts. 12 e 14), ou seja, deve responder por prejuízos causados a terceiros independentemente da existência de culpa.

Isso significa que, em caso de reparação de dano, cabe ao consumidor demonstrar apenas o defeito do produto ou serviço, o prejuízo sofrido e o nexo de causalidade entre eles.

No entanto, o Código também estabelece que o fornecedor não será responsabilizado, entre outras vezes, quando provar: a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

Aqui, cumpre alertar para uma importante súmula do Superior Tribunal de Justiça relacionada a contratos bancários:

Enunciado 479 do STJ: As instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias.

 

2.2 – Da inversão do ônus da prova

Estabelece o artigo 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor que:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;

Lembra-se que, no nosso sistema jurídico, em regra, cabe ao autor provar o fato constitutivo de seu direito.  Ao réu, por sua vez, cabe demonstrar a existência de fato modificativo, impeditivo ou extintivo do direito do autor, conforme Código de Processo Civil – CPC.

No entanto, conforme visto, em decorrência da reconhecida vulnerabilidade técnica, econômica e jurídica do consumidor, essa regra poderá ser flexibilizada. Isso porque a hipossuficiência do consumidor pode alcançar o próprio conteúdo probatório do fato que se discute.

O CDC estabelece os seguintes requisitos para decretação da inversão do ônus: verossimilhança das alegações ou  hipossuficiência.

O Ministro Paulo de Tarso Sanseverino esclarece que:

A hipossuficiência, que é um conceito próprio do CDC, relaciona-se à vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo. Não é uma definição meramente econômica, conforme parte da doutrina tentou inicialmente cunhar, relacionando-a ao conceito de necessidade da assistência judiciária gratuita. Trata-se de um conceito jurídico, derivando do desequilíbrio concreto em determinada relação de consumo. Num caso específico, a desigualdade entre o consumidor e o fornecedor é tão manifesta que, aplicadas as regras processuais normais, teria o autor remotas chances de comprovar os fatos constitutivos de seu direito. As circunstâncias probatórias indicam que a tarefa probatória do consumidor prejudicado é extremamente difícil.

Há outras importantes facilidades que, por fim, apenas remetemos o leitor: possibilidade da propositura da ação no domicilio do consumidor (CDC, art. 6º, VI); e prazo prescricional mais dilatado (art. 27, fato do produto ou serviço).

 

  1. Dos consumidores

Esclarecidos os principais pontos, voltemos à questão inicial. Afinal, quem são os consumidores?

O artigo 2º do CDC traz o conceito de consumidor como sendo: “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.”

Da leitura do artigo supra concluímos que o que qualifica uma pessoa jurídica como consumidora é a aquisição ou utilização de produtos ou serviços em benefício próprio; isto é, para satisfação de suas necessidades pessoais, sem ter o interesse de repassá-los a terceiros, nem empregá-los na geração de outros bens ou serviços.

Assim, no exemplo exposto no importante REsp nº 733.560/RJ da Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI: “Se a pessoa jurídica contrata o seguro visando a proteção contra roubo e furto do patrimônio próprio dela e não o dos clientes que se utilizam dos seus serviços, ela é considerada consumidora nos termos do art. 2.º do CDC.”

No entanto, alerta-se que a jurisprudência caminha no sentido interpretar a expressão “destinatário final”, à luz da razão pela qual foi editado o CDC, qual seja, proteger o consumidor porque reconhecida sua vulnerabilidade frente ao mercado de consumo.

Disputam, na doutrina e na jurisprudência,  quanto ao alcance do termo “destinatário final”, três teorias:  a teoria finalista, a teoria maximalista e a teoria finalista mitigada.

Os finalistas propõem que se interprete a expressão ‘destinatário final’ do art. 2º de maneira restrita, com base nos princípios básicos do CDC, expostos nos arts. 4º e 6º . Assim, apenas seria consumidor o destinatário final que seja também parte vulnerável nas relações contratuais.

Em situações excepcionais, todavia, o Superior Tribunal de Justiça tem mitigado os rigores da teoria finalista, para autorizar a incidência do CDC nas hipóteses em que a parte (pessoa física ou jurídica), embora não seja tecnicamente a destinatária final do produto ou serviço, se apresenta em situação de vulnerabilidade.

Parece ser essa a tendência da jurisprudência: a adoção da teoria finalista mitigada para caracterizar uma relação jurídica como de consumo, admitindo a equiparação da pessoa jurídica adquirente de um produto ou serviço à figura do consumidor, “desde que seja a destinatária final do produto ou serviço (teoria finalista) ou comprove ostentar a condição de vulnerável em sua relação face ao fornecedor (teoria finalista mitigada ou aprofundada)” (Acórdão 1252703,07037988920198070001, Relator: SIMONE LUCINDO, 1ª Turma Cível, data de julgamento: 27/5/2020, publicado no DJE: 10/6/2020. Pág.: Sem Página Cadastrada).

Essa teoria é uma importante aliada para equiparar relações negociais entre empresas que nem sempre possuem a mesma capacidade técnica, econômica ou jurídica.

 

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