Alexandre Mattos de Freitas[1]
A Administração Pública brasileira, historicamente pautada por um modelo de gestão impositivo e autoritário, está passando por uma transformação rumo à consensualidade. Essa mudança sinaliza um novo caminho, no qual a Administração Pública passa a valorizar e, por vezes, privilegiar, formas de gestão baseadas no acordo, na negociação, na cooperação, na colaboração, na conciliação, assim como na transação.
A administração consensual é considerada a nova face da Administração Pública no século XXI, marcando a evolução de um modelo centrado no ato administrativo unilateral para um modelo que contempla os acordos administrativos, que são bilaterais e multilaterais. Essa disseminação visa nortear a transição de um modelo de gestão pública vertical e imperativo para um modelo aberto e democrático, habilitando o Estado contemporâneo a desempenhar suas tarefas e atingir seus objetivos, preferencialmente, de modo compartilhado com os cidadãos.
Em sua essência, a consensualidade no Direito Administrativo brasileiro se propõe estimular a criação de soluções privadas de interesse público, enriquecendo os modos e formas de atendimento da Administração Pública. Essa abordagem reflete uma adaptação às exigências de uma sociedade complexa, dinâmica e plural, que demanda um modelo menos burocrático e mais orientado a resultados e à efetiva satisfação das necessidades sociais.
A abertura da Administração Pública às variações consensuais como forma de exercício de suas atividades é impulsionada por diversos fatores interligados:
A evolução do modelo de Estado, com o surgimento do Estado Constitucional e Democrático de Direito, introduziu no Direito Administrativo uma nova construção teórica que permite a releitura de institutos jurídicos. A constitucionalização do direito fornece o arcabouço teórico para uma atuação autônoma e proativa do administrador público, que não se restringe à mera legalidade estrita, mas busca a eficiência e a concretização de direitos fundamentais. Essa abordagem moderna do Direito Administrativo enfatiza o papel do Estado como prestador de serviço público, com o fim de garantir a efetividade dos direitos fundamentais do cidadão.
O reconhecimento da consensualidade na Administração Pública confere novos usos à categoria jurídica do contrato no setor público, defendendo-se a existência de um módulo consensual da administração pública. Esse módulo, como gênero, abrange todos os ajustes negociais e pré-negociais, formais e informais, vinculantes e não-vinculantes. A acepção do termo “contrato”, quando empregado para retratar a base consensual dessas novas relações, corresponde à nova contratualização administrativa.
É crucial diferenciar “acordo” de “contrato” neste contexto. “Acordo” é uma noção mais ampla se comparada à de “contrato”; “acordo” é gênero, do qual “contrato” é espécie. O acordo, antes de ser uma categoria jurídica, é uma categoria lógica que se destrincha em espécies distintas. Enquanto no contrato há destaque para a patrimonialidade da relação, nos acordos administrativos o interesse público está em evidência, sendo o aspecto da patrimonialidade juridicamente indiferente. Isso representa uma inversão radical das teses tradicionais, em que o contrato é visto como espécie de um gênero mais amplo de “acordo”.
Pode-se citar diversas autorizações legais relacionadas à consensualidade em nosso direito:
Uma das maiores inovações recentes veio com a Lei nº 13.655/2018, norma que alterou a LINDB. Seu Art. 26 expressamente autoriza a autoridade administrativa a celebrar compromissos com os interessados para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença. Este artigo é considerado uma cláusula geral de negociação no âmbito da Administração Pública e um permissivo legal genérico para a celebração de acordos, inclusive no campo das sanções, sem a necessidade de previsão de tipos específicos de acordos na legislação.
Mais recentemente, a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) reforçou a consensualidade em contratações públicas, introduzindo e sistematizando instrumentos como:
No âmbito do processo administrativo sancionador, a consensualidade busca substituir a imposição de sanção disciplinar por uma solução baseada no consenso, o que é essencial para a efetivação do princípio constitucional da eficiência administrativa. Os acordos substitutivos de sanção são preferidos em determinados casos por serem mais efetivos, evitarem a judicialização, serem proporcionais ao gravame, valorizarem as finalidades setoriais e economizarem tempo e custos.
Apesar dos avanços normativos e dos reconhecidos benefícios, a prática da consensualidade na Administração Pública brasileira enfrenta obstáculos significativos. Um estudo empírico com servidores da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Tribunal de Contas da União que lidam com contratações públicas revelou que, apesar da ampliação dos instrumentos legais, a consensualidade não está disseminada no cotidiano desses agentes. As principais barreiras incluem:
A cultura burocrática e ortodoxa da Administração Pública, aliada a um emaranhado confuso de leis e atos normativos, contribui para a cultura do medo. Para superar esse cenário, é necessário que o arranjo institucional da Administração incentive escolhas inovadoras.
A consensualidade no Direito Administrativo brasileiro representa uma mudança de paradigma fundamental, afastando-se da unilateralidade e da imposição para abraçar o diálogo, a negociação e a cooperação. Impulsionada pelos princípios da eficiência e da democracia, e fortalecida por avanços legislativos como a LINDB e a Nova Lei de Licitações e Contratos, a Administração Pública tem à sua disposição uma gama crescente de instrumentos para promover soluções mais eficazes, legítimas e democráticas.
No entanto, a plena disseminação da prática consensual ainda enfrenta barreiras significativas. A persistência de dogmas tradicionais, como a supremacia a priori do interesse público e a do excessivo apego à legalidade estrita, aliada ao medo da responsabilização por parte de órgãos de controle, limita a proatividade e a autonomia dos administradores públicos.
Superar esses obstáculos é crucial. Isso implica não necessariamente a edição de novas leis, mas sim uma mudança de mentalidade institucional e cultural, que prestigie o diálogo, a ponderação e a busca pela melhor solução para o interesse público, se afastando, por vezes, de um formalismo excessivo. A Administração Pública precisa incentivar seus agentes a empreenderem soluções inovadoras e a se valerem da discricionariedade permitida pelo ordenamento jurídico, sempre com base na juridicidade e na busca maximizada do bem comum.
A experiência consensual no direito concorrencial, por exemplo, serve como um “laboratório” que pode inspirar outros subsistemas do direito administrativo. A consensualidade não é um mecanismo estranho ou inovador, mas um meio efetivo de satisfação das finalidades públicas que deve ser compreendido e aplicado com responsabilidade, transparência e abertura ao diálogo, garantindo que os acordos sigam trâmites internos formais e sejam sindicáveis pelos órgãos de controle.
Somente assim o Direito Administrativo brasileiro poderá evoluir para um modelo verdadeiramente dialógico, eficiente e democrático, apto a enfrentar os desafios da gestão pública contemporânea.
[1] Advogado. Membro da Comissão de Direito Administrativo da OAB/DF. Membro da Comissão de Licitações e Contratos da OAB/DF. Servidor público efetivo do Senado Federal, onde atua como Coordenador de Planejamento e Controle de Contratações. Mestre em Direito pelo UniCeub. Administrador pela UnB. Especialista em Gestão Pública e Gestão Tributária e Aduaneira. Ocupou cargos públicos efetivos na Procuradoria-Geral da República e na Procuradoria-Geral do Trabalho. Autor da obra “Os óbices ao avanço da prática da consensualidade nas contratações públicas”, publicada em 2023. Autor da obra “Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos”, publicada em 2021. Autor de artigos publicados sobre contratações públicas. Professor e conteudista de cursos sobre a Nova Lei de Licitações e Contratos. Palestrante pelo Programa INTERLEGIS, que faz parte do Instituto Legislativo Brasileiro – SENADO.
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